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sexta-feira, 25 de março de 2022

O vampiro que nasceu há 10 mil anos

 

Pouca gente sabe, mas o roqueiro Raul Seixas tinha a vontade de se tornar cineasta. Rauzito manifestou essa vontade em algumas entrevistas cedidas no final dos anos 1980. Contudo, seu sonho era bastante antigo, vinha da infância. Walter Carvalho, o diretor do excelente documentário Raul - O Início, o Fim e o Meio (2011), afirmou que Raul “queria ser cineasta, era fã incondicional de cinema”. Raul realmente tinha um olhar cinematográfico que transparecia em suas letras, afinal de contas, quem não lembra do enquadramento do rosto do Silvio Santos, “Sorrindo aquele riso franco e puro para um filme de terror”, na música Super Heróis? Existem inúmeras outras passagens cinematográficas nas músicas de Raul. Mas, o objetivo central desse texto é outro: mostrar que Raul não era (e nem queria ser, diga-se de passagem) um músico técnico, mas sim um artista potente, daqueles que você não encontra aos montes (como um músico técnico). Faça uma pequena e rápida pesquisa sobre músicos virtuosos no Youtube e encontrará centenas deles. Mas, se buscar artistas potentes, criativos, dificilmente encontrará muitos. Convenhamos: a maioria dos músicos técnicos aparecem tocando músicas de outros músicos e raramente uma composição própria, o que os torna ainda mais irrelevantes em termos artísticos (criação). No caso dos compositores virtuosos, é comum ver a técnica sobressair e o resultado é uma virtuose desprovida de potência artística. Isso não quer dizer que músicos que dominam a técnica não possam ser grandes artistas. O fato é que a técnica por si só não é suficiente. É preciso metamorfose, atuação, desterritorialização, potência estética. A técnica precisa da afetividade.

Certa vez Raul disse que não era músico, mas sim um ator. Tão bom ator que fingia que era músico e todos acreditavam. A música para Raulzito não era um fim, mas um meio para atingir fins mais potentes do que o próprio som que ele fazia. Raul era um artista capaz de ver no acontecimento linhas de fuga e desterritorializações potentes, para falar nos termos propostos por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Foi assim que ele conseguiu encontros potentes: com Paulo Coelho, Marcelo Motta, Claudio Roberto, Marcelo Nova. Somente um vampiro como Raul para ver reluzir o acontecimento. Foi o olhar vampiresco de Raul que viu a potência do acontecimento em um encontro com um compositor desconhecido, recluso na pequena cidade de Miguel Pereira. Claudio Roberto se tornaria o seu principal parceiro musical. Quem veria um acontecimento assim? Somente os grandes artistas, como João Gilberto, este também um grande visionário capaz de apreender o acontecimento.

Raul era de fato um ator, um personagem farsante, no sentido deleuziano do termo. O personagem farsante é um antídoto contra o personagem verídico, aquele que mantém a sua “velha opinião formada sobre tudo”. O personagem farsante se metamorfoseia conforme à dinâmica real do pensamento, enquanto o personagem verídico resiste às quebras de paradigmas, uma vez que acredita em verdades absolutas; verdades sobre a música, sobre o cinema, a  verdade sobre a nostalgia e etc. Enquanto o personagem verídico consome música americana sem devorá-la e degluti-la, Raul devora Elvis e digeri Genival Lacerda, como bom antropófago. Uma coisa é certa: nada pode abalar o raulseixismo, pois trata-se de um devir.

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